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quarta-feira, 30 de maio de 2012

FILMES


UMA MENTE BRILHANTE



O SOLISTA


ESQUIZOFRENIA: ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO


LAVRAS DE TODOS NÓS

Lavras era assim...



Padre Juarez no programa do Jô Soares


PLABO PICASSO

PABLO PICASSO









FERNANDO SABINO

FERNANDO SABINO
O HOMEM NU
 
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
       — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
 — Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.





A ÚLTIMA CRÔNICA
              

                     Fernando Sabino




  A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café
  junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. 
 
                                    
                                    
  A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou
do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência,
   que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao
   episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de 
 
esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico,
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o
verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último
poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar
     fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.                                  
  
   Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de 


       sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha
de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas
curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres
  esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da
família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam
                   para algo mais que matar a fome.
                                    
       Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro
     que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, 
 
inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um
    pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando
 imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta
para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
      reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu
 lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão 
 
 apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo
    simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia
                             triang ular.
                                    
        A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente.
Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e
      filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O
 pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os
                         observa além de mim.
                                    
       São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta
 caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola,
 o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto
ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra
 com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito 
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. 
    A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas 

  e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura --
 ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de
    bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim,
      satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da 
 
    celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se
encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça
abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se
                          abre num sorriso.
                                    
        Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura
              como esse sorriso.
                                    
                                    
     Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora
 do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.






O O gato sou eu

(Fernando Sabino)







Aí então, eu sonhei que tinha acordado. Mas continuei dormindo.
 
- Continuou dormindo.- Continuei dormindo e sonhando. Sonhei que estava acordado na cama, e ao lado, sentado na cadeira, tinha um gato me olhando.- Que espécie de gato?- Não sei. Um gato. Não entendo de gatos. Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato.- A que você associa essa imagem?- Não era uma imagem: era um gato.- Estou dizendo a imagem do seu sonho: essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção do seu subconsciente. A que você associa ela?- Associo a um gato.- Eu sei: aparentemente se trata de um gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.- Essa não, doutor. A ser alguém, neste caso o gato sou eu.- Você está enganado. E o mais curioso é que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se sonha não passa de uma projeção do eu.- Uma projeção do senhor?- Não: uma projeção do eu. O eu, no caso, é você.- Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e estamos conversados.- Eu sei: eu sou eu, você é você. Nem eu iria pôr em dúvida uma coisa dessas, mais do que evidente. Não é isso que eu estou dizendo. Quando falo no eu, não estou falando em mim, por favor, entenda.- Em quem o senhor está falando?
   
- Estou falando na individualidade do ser, que se projeta em símbolos oníricos. Dos quais o gato do seu sonho é um perfeito exemplo. E o papel que você atribui ao gato, de fiscalizá-lo o tempo todo, sem tirar os olhos de você, é o mesmo que atribui a mim. Por isso é que eu digo que o gato sou eu.- Absolutamente. O senhor vai me desculpar, doutor, mas o gato sou eu, e disto não abro mão.- Vamos analisar essa sua resistência em admitir que eu seja o gato.- Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou seu?- Seu. Quanto a isto, não há a menor dúvida.- Pois então? Sendo assim, não há também a menor dúvida de que o gato sou eu, não é mesmo?- Aí é que você se engana. O gato é você, na sua opinião. E sua opinião é suspeita, porque formulada pelo consciente. Ao passo que, no subconsciente, o gato é uma representação do que significo para você. Portanto, insisto em dizer: o gato sou eu.- E eu insisto em dizer: não é.- Sou.- Não é. O senhor por favor saia do meu gato, que senão eu não volto mais aqui.- Observe como inconscientemente você está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem…- Que é que há, doutor? Está me chamando de chantagista?- É um modo de dizer. Não vai nisso nenhuma ofensa. Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida, mesmo num sonho, na forma de um gato.- Pois se o gato sou eu! Daqui a pouco o senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.- Olhe aí, não estou dizendo? Olhe a sua reação: isso é a sua maneira de me agredir. Não posso cobrar consulta dentro do seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.- Já disse que o gato sou eu!
 
- Sou eu!- Ponha-se para fora do meu gato!
 
- Ponha-se para fora daqui!- Sou eu!- Eu!- Eu! Eu!
- Eu! Eu! Eu!




MAIS ALMANAQUE BRASIL PARA VOCÊS
















MAURÍCIO DE SOUZA - ALMANAQUE BRASIL

A Turma da Mônica  faz parte da cultura brasileira e povoa o imaginário de crianças e adultos  de muito encantamento. 
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Abraços...
Líbia Carlos